07
Jan 13

A cidade verde (João Seixas, Público)

http://www.publico.pt/local-lisboa/jornal/a-cidade-verde-25846216

A cidade é mais ecológica que o campo. É desta forma bastante provocadora que se intitula um dos textos do especial 25 Ideias Que Perturbam da revista Books. Um título impressionante de mais para passar incólume. Mas impressionante sobretudo porque bem capaz de ser verdadeiro. Desde há muito, e felizmente cada vez mais, que se pensa e trabalha em tornar as cidades mais verdes. Mas o que é uma "cidade verde"? Uma cidade com muitas árvores e jardins? Sim, mas muito mais que isso. Uma cidade verde é uma cidade onde a mobilidade é mais suave, mais colectiva e menos poluente; é uma cidade que consome bens cuja produção e distribuição é mais cuidada, mais próxima e mais orgânica; é uma cidade que trata com cuidado os seus detritos; é uma cidade que atende e reserva com atenção as suas energias e fontes vitais como o sol, a água, os alimentos. Mas não só. Mesmo se todos os edifícios forem ecológicos, se todas as mobilidades forem eléctricas, pode não chegar. Uma cidade verde deverá ser uma cidade com altas concentrações. Uma cidade densa e diversa. Peter Calthorpe, um dos pioneiros do "novo urbanismo", escola que defende as cidades compactas e ecológicas, escreveu: "a cidade é a forma de estabelecimento humano mais benigna para o ambiente". E um recente relatório das Nações Unidas dizia, de forma simples: "a concentração de população e de empresas nas zonas urbanas reduz consideravelmente os custos unitários da água corrente, dos esgotos e canalizações, das vias, da electricidade, da colecta de lixo, dos transportes, dos sistemas de apoio social e das escolas". Surpreendente? Não propriamente. A cidade é onde vive, ou onde gostaria de viver, a maioria dos seres humanos. Mas se há cidade, há também protocidade (ou urbanizações e afins sem completa diversidade de opções) e anticidade (casas, condomínios e urbanizações distantes e fechadas, quer para muito ricos quer para muito pobres, negação completa da vida social em pseudonome de vida urbana). Em nome de fazer cidade, têm-se feito das mais belas paisagens humanas, mas também das mais desprezíveis e separadas. Então densidade e diversidade de quê? De tudo: habitações e empregos, bens e serviços, propostas e opções. Oportunidades. E direitos. Perto. Próximos. Constantes. Seguros. Uma cidade verde será uma cidade que, para além de ter boas mobilidades e tecnologias de produção e de reserva de água e energia, em cada edifício e em cada horta, conterá ainda comunidades vibrantes, próximas e democráticas - e, assim, verdadeira e humanamente ecológicas. Uma grande e concentrada "biodiversidade" de desejos e de direitos. Utopia? Não me parece, algo até bastante real e prático, a acontecer em muitos locais. Se todos vivêssemos no campo, o mundo não seria mais ecológico. As densidades seriam tão baixas e espalhadas que o planeta ficaria rapidamente exaurido. O próprio campo desapareceria, consumido por mil desejos - o que tem aliás acontecido, e de forma séria. Para além de que teríamos outros resultados pouco simpáticos de uma supostamente idílica vida rural: menos cosmopolitismo, menos cidadania, menos democracia. Um dos primeiros termos da globalização, "a grande aldeia", nunca me convenceu. A solução está, assim, em vivermos em cidades, e em cidades verdes. Não todos, deve-se obviamente respeitar e apoiar quem queira viver no campo. Até porque o campo também necessita de ser ecológico, e ter portanto vida humana suficiente para se cuidar e atender. Os ecologistas - que no fundo deveremos ser todos - devem assim olhar de frente para a cidade. E acarinhá-la. Se é ao homem que compete a responsabilidade e a solução da sustentabilidade do planeta, é na cidade que estão as maiores questões e as melhores soluções. Na verdade, a cidade poderá não ser, na sua essência, mais verde que o campo. Mas terá que o ser, por necessidade e por desígnio. Da humanidade e do planeta. Geógrafo

 

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21
Out 11

Bravo, Mouraria! (texto de João Seixas, publicado no jornal Público)


Assisti com vivo prazer ao anúncio das propostas vencedoras do Orçamento Participativo (OP) de Lisboa para 2011/2012. Dezoito mil pessoas votaram em 228 projectos propostos pelos mais variados cidadãos e colectivos da cidade, de associações de moradores à própria Universidade.

O projecto mais votado intitula-se ‘Há vida na Mouraria’. Como dizia a reportagem do Público, “não é fácil traduzir a proposta”, pois “define-se como um projecto de acção social mas não se conhecem bem as suas fronteiras”. Mas o facto de este projecto ter ficado em primeiro lugar no OP é uma notícia extraordinária para a cidade. Por múltiplas razões. Porque este foi construído numa conjugação de ideias vindas de mais de 20 diferentes agentes – associativos, públicos e privados, Juntas de Freguesia, a própria Câmara Municipal que ajudou à integração. Porque surge de uma estratégia prévia colectivamente discutida (o Plano de Desenvolvimento Comunitário da Mouraria), bem como de propostas de cidadãos comuns. Porque o projecto tem ambições de chegar ao colectivo sem necessitar de se ancorar numa ‘grande obra’ (um pavilhão, uma piscina, uma estátua), antes se manifestando nos quotidianos de cada habitante e passeante. Porque este é um bairro cujas principais características passam por uma conjugação de grande diversidade e riqueza humana com precariedade urbana, mostrando uma força cívica maior que a larga maioria dos bairros mais qualificados da cidade.

O projecto propõe acções e programações muito concretas, que incentivarão à melhoria das relações interpessoais e à valorização do património imaterial do bairro. Envolvendo as suas gentes, desenvolvendo actividades e empregos, atendendo à inclusão dos mais desfavorecidos, formando conhecimentos e saberes. O projecto atende a novas vivências urbanas e a uma nova cultura de associativismo e de cidadania, aproximando os espaços de cada indivíduo dos espaços da cidade para, com actividades múltiplas e com muita cor, fazer comunidade.

O OP existe em Portugal há diversos anos, do Algarve ao Minho; mas são ainda poucos os territórios que o desenvolvem. Pelo mundo fora, tem sido motor de milhares de processos de criação e de envolvimento, alicerçando comunidades. Sustentando as incríveis energias que há nas cidades, quando os laços fracos se tornam mais fortes, através de projectos mais colectivos e mais democráticos. Conciliando a administração com a cidadania, e alargando fronteiras da própria política, portanto.

Temem os críticos que o OP debilite a responsabilidade de governar, colocando o poder na rua. Parece-me bem o contrário: o OP acrescenta motivação cívica e capacidade de acção à cidade, ao mesmo tempo que aproxima e responsabiliza e aproxima mais as administrações. E com exemplos tão bons como este da Mouraria, diria mesmo que multiplica a qualidade da governação e a qualidade da cidadania, dos direitos e deveres de ambos.

Isto parece-me pão quente para a faminta boca da nossa sociedade nestes tempos de crise; de crise da própria confiança e democracia. O nosso futuro será sem dúvida melhor se em cada bairro, em cada cidade, conseguirmos construir, através de uma série de princípios e direitos de base (democracia, diversidade, abertura, responsabilidade) movimentos abertos e partilhados. Onde os diferentes agentes se sintam responsáveis por estratégias e projectos colectivos, assim se sentindo parte plena das dinâmicas da sua cidade e do seu bairro. Uma cumplicidade em constante metabolismo. 

Nos tempos que aí vêm – na verdade, nos tempos que já aí estão – vamos precisar muitíssimo deste sentido de comunidade. Do reconhecimento da força da junção de laços fracos – e laços diversos e diferentes, claro. Este exemplo vencedor, vindo justamente de onde há imensa diversidade, mostra como esta é central para a própria criatividade e evolução humana. Por tudo isto, bravo Mouraria!

João Seixas, Geógrafo

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O que eu preciso de saber sobre… AS CIDADES (texto de João Seixas, publicado na VISÃO)

O QUE É UMA CIDADE? A cidade é, provavelmente, seja ela Roma ou Tóquio, Tombouctou ou Lisboa, a mais complexa e colectiva realização humana alguma vez concebida na história. A cidade é uma construção contínua de habitats, de agrupamentos de populações num determinado espaço geográfico, onde ocorrem relações e intercâmbios da natureza mais diversa: bens, serviços, conhecimentos, simbolismos, afectos, política. Para tal, a cidade sustenta-se em estruturas físicas (de habitação, de circulação, de comunicação) e em redes de distribuição (de bens essenciais, de energia, de informação). Para tudo isto funcionar, a cidade exige valores e normas de habitabilidade, de relacionamento, de produção e de reprodução, de mobilidade.

As cidades são notáveis acumuladores de energia humana. Por isso provocam enormes externalidades, quer positivas, quer negativas. Daí o seu enorme fascínio, com suas luzes e sombras, e serem vistas e sentidas, em simultâneo, como horrendos infernos ou fabulosos édens. Daí serem chave das civilizações, de Atenas a Roma e de Nova Iorque a Xangai. Daí serem a chave da humanidade. As cidades são os grandes pólos vertebradores do planeta, os focos de irradiação cultural, os centros de inovação tecnológica, os motores da economia mundial, os leit-motivs de ficção e de utopia, os esteios da transformação social.

CIDADE, SOCIEDADE E POLÍTICA. Desde Platão que sabemos que a Polis – a cidade e a política – é, antes de tudo, a cidadania. E desde Aristóteles que sabemos que só nos tornamos verdadeiramente humanos através da participação e da acção na comunidade. A governação, a regulação e o exercício do urbanismo na cidade envolvem poder, território, organização e cidadania. Em democracia, a cidade exige uma governação sustentada em normas, valores e processos colectivos, não podendo deixar-se cair no simples favorecimento de interesses e de comunidades parciais.

De forma simples, poder-se-ão colocar por quatro grandes ordens de pensamento e de acção, os compromissos de desenvolvimento urbano: na forma da cidade, e nos dilemas entre compacidade e dispersão pelos territórios onde estas se estruturam; na funcionalidade da cidade, e nos dilemas entre complexidade e especialização; na coesão social, e nas escolhas entre integração ou segregação social; no seu reconhecimento e identidade, e no aprofundamento da nossa cumplicidade com ela, ou numa fragmentação cognitiva.

 

A CIDADE, HOJE E AMANHÃ. A condição urbana é hoje metáfora viva dos nossos paradoxos, dilemas e possibilidades. A maioria das cidades de hoje são meta-cidades ou mesmo hiper-cidades, estendidas as suas influências por vastas escalas e territórios espacio-relacionais e pelas mais diversas percepções de quotidianos, de sofrimentos e de oportunidades.

Nesta época fascinante, novas e magníficas oportunidades – de desenvolvimento, de inclusão e de justiça, de qualidade de vida – se podem formar e expandir. Em Faro, em Copenhaga ou em Nairobi. Como as consolidar? Com inteligência, estratégia e compromisso colectivo. Inteligência global, decerto, mas muita inteligência local, desde logo. O sucesso de cada polis dependerá, cada vez mais, de si própria, e em si própria. Re-identificando o indivíduo e a sociedade, com a cidade e tudo o que ela significa. Como escreveu Jorge Luís Borges, “a cidade impõe-nos o terrível dever da esperança”. E sobre o papel e o lugar de cada cidade para o nosso amanhã, diria como Galileu, quando observava as estrelas no seu telescópio, e foi questionado sobre qual a estrela central do universo: “Toda, e qualquer estrela, pode ser o centro”.

 

João Seixas, Geógrafo

 

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29
Jun 11

Uma oliveira na cidade (artigo de opinião, João Seixas)

Uma oliveira na cidade

No dia 18 de Junho passado, numa cerimónia simples, as cinzas de José Saramago foram colocadas à sombra de uma oliveira, no popular Campo das Cebolas, em Lisboa, em frente à Casa dos Bicos, histórico edifício de arquitectura civil onde ficará sediada a fundação cultural. Saramago foi um fortíssimo reflector das almas, das luzes e das sombras dos homens. Um extraordinário cidadão do mundo, amante da cidade e da cidadania plena. Com plena humanidade, na sua lápide a frase “Mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia”. Deixou uma obra enorme, uma obra para o futuro com a força do passado.

À sombra de uma oliveira. Da Azinhaga, aldeia ribatejana onde nasceu. A oliveira é símbolo mediterrâneo por excelência, padrão de cultura, de riqueza, de resistência e de longevidade. Elementos também chave para uma cidade, como a muy antiga Lisboa, filha de Roma e de Atenas, ardilosamente tecida por longos séculos, por entre uma fértil e bela região envolvente, uma crescente vastidão marítima e uma população variada e disponível. E entre cristãos-velhos e judeus-novos, diversidades e uniformidades, alegrias e iniquidades.

“Lisboa ali estava, oferecida na palma da terra, agora alta de muros e casas. A barca aproou à Ribeira, fez o mestre manobra para encostar ao cais depois de ter arriado a vela, e os remadores levantaram num só movimento os remos do lado da atracação, os do outro lado harpejaram a amparar, mais um toque no leme, um cabo lançado por cima das cabeças, foi como se tivessem juntado as duas margens do rio” (in Memorial do Convento).

Este gesto de Lisboa tem um imenso significado. Pela atenta homenagem a quem ama a cidade: “Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro” (in Palavras para uma cidade). E Saramago regressou à cidade que amava, renovando esperanças com ela, mesmo se uma parte dela o tivesse exilado.

Pela força cultural e política da obra do homem e escritor. Uma obra em prol da cidadania. A cidade é espelho de nós próprios, como indivíduos e como colectivo. Mas tem sido colonizada por capitalismos extremos, por tecnicismos corporativos, por consumismos banalisadores de desejos. E ainda vêm tempos mais difíceis, bem se sabe. De novo, histórias de cerco à cidade. Muita cegueira, na nossa caverna. E tão necessária lucidez.

A lucidez, tal como a cidade e a cidadania – e a oliveira –, é trabalho longo e de fundo. Tanto necessita de estratégias de longo prazo como de intimidades quotidianas. Por entre a precariedade laboral, as hipotecas e os hipermercados, os desprezos e as esquizofrenias mediatico-políticas, os cidadãos das cidades futuras serão mais cosmopolitas e mais exigentes. Mais empenhados e dispostos a fazerem o gesto, a dizerem a palavra: “os vivos ainda têm tempo (...) para dizerem a palavra, para fazerem o gesto, Que gesto, que palavra, Não sei, morre-se de não a ter dito, morre-se de não o ter feito” (in O ano da morte de Ricardo Reis).

Para que as cidades sejam mais vivas, justas e criativas. Para que sejam cidades onde se conjuguem diferenças e compromissos, e onde se construam projectos. Para que sejam cidades bem governadas. E para que cada um dos seus lugares possa ser lugar de desejo e de realização. De Liberdade.

“Sabemos muito mais do que julgamos, podemos muito mais do que imaginamos”. Pois “somos todos escritores, só que alguns escrevem e outros não” (in entrevistas).

E pela postura de uma cidade que, assumidamente, defende princípios e valores. Uma cidade verdadeiramente política. Não há política sem cidade. E vice-versa. Cada cidade fará as suas escolhas, por entre um futuro fragmentado, receoso e insustentável, ou um futuro mais inclusivo, plural e cosmopolita. E “Lisboa tem-se transformado nos últimos anos, foi capaz de acordar na consciência dos seus cidadãos o renovo de forças que a arrancou do marasmo em que caíra” (in Palavras para uma cidade). Prossigamos, assim, com o trabalho longo de construir comunidade, com a força e a frescura de uma oliveira.

João Seixas
Geógrafo
In Público, 27 de Junho de 2011


http://www.josesaramago.org/detalle.php?id=1275

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