Bravo, Mouraria! (texto de João Seixas, publicado no jornal Público)
Assisti com vivo prazer ao anúncio das propostas vencedoras do Orçamento Participativo (OP) de Lisboa para 2011/2012. Dezoito mil pessoas votaram em 228 projectos propostos pelos mais variados cidadãos e colectivos da cidade, de associações de moradores à própria Universidade.
O projecto mais votado intitula-se ‘Há vida na Mouraria’. Como dizia a reportagem do Público, “não é fácil traduzir a proposta”, pois “define-se como um projecto de acção social mas não se conhecem bem as suas fronteiras”. Mas o facto de este projecto ter ficado em primeiro lugar no OP é uma notícia extraordinária para a cidade. Por múltiplas razões. Porque este foi construído numa conjugação de ideias vindas de mais de 20 diferentes agentes – associativos, públicos e privados, Juntas de Freguesia, a própria Câmara Municipal que ajudou à integração. Porque surge de uma estratégia prévia colectivamente discutida (o Plano de Desenvolvimento Comunitário da Mouraria), bem como de propostas de cidadãos comuns. Porque o projecto tem ambições de chegar ao colectivo sem necessitar de se ancorar numa ‘grande obra’ (um pavilhão, uma piscina, uma estátua), antes se manifestando nos quotidianos de cada habitante e passeante. Porque este é um bairro cujas principais características passam por uma conjugação de grande diversidade e riqueza humana com precariedade urbana, mostrando uma força cívica maior que a larga maioria dos bairros mais qualificados da cidade.
O projecto propõe acções e programações muito concretas, que incentivarão à melhoria das relações interpessoais e à valorização do património imaterial do bairro. Envolvendo as suas gentes, desenvolvendo actividades e empregos, atendendo à inclusão dos mais desfavorecidos, formando conhecimentos e saberes. O projecto atende a novas vivências urbanas e a uma nova cultura de associativismo e de cidadania, aproximando os espaços de cada indivíduo dos espaços da cidade para, com actividades múltiplas e com muita cor, fazer comunidade.
O OP existe em Portugal há diversos anos, do Algarve ao Minho; mas são ainda poucos os territórios que o desenvolvem. Pelo mundo fora, tem sido motor de milhares de processos de criação e de envolvimento, alicerçando comunidades. Sustentando as incríveis energias que há nas cidades, quando os laços fracos se tornam mais fortes, através de projectos mais colectivos e mais democráticos. Conciliando a administração com a cidadania, e alargando fronteiras da própria política, portanto.
Temem os críticos que o OP debilite a responsabilidade de governar, colocando o poder na rua. Parece-me bem o contrário: o OP acrescenta motivação cívica e capacidade de acção à cidade, ao mesmo tempo que aproxima e responsabiliza e aproxima mais as administrações. E com exemplos tão bons como este da Mouraria, diria mesmo que multiplica a qualidade da governação e a qualidade da cidadania, dos direitos e deveres de ambos.
Isto parece-me pão quente para a faminta boca da nossa sociedade nestes tempos de crise; de crise da própria confiança e democracia. O nosso futuro será sem dúvida melhor se em cada bairro, em cada cidade, conseguirmos construir, através de uma série de princípios e direitos de base (democracia, diversidade, abertura, responsabilidade) movimentos abertos e partilhados. Onde os diferentes agentes se sintam responsáveis por estratégias e projectos colectivos, assim se sentindo parte plena das dinâmicas da sua cidade e do seu bairro. Uma cumplicidade em constante metabolismo.
Nos tempos que aí vêm – na verdade, nos tempos que já aí estão – vamos precisar muitíssimo deste sentido de comunidade. Do reconhecimento da força da junção de laços fracos – e laços diversos e diferentes, claro. Este exemplo vencedor, vindo justamente de onde há imensa diversidade, mostra como esta é central para a própria criatividade e evolução humana. Por tudo isto, bravo Mouraria!
João Seixas, Geógrafo