[debate no 'Cidades pela Retoma']
[Nuno] post 3
Caro Mário, agradeço a resposta e os links interessantes,
Como diz, um cenário recessivo afasta a hipótese da mossa nos preços que faz o aumento de procura, tal como, inversamente, os preços altos inviabilizam um crescimento económico contínuo (pelo menos de todos e como "no antigamente").
No meio de tudo isto, concordo também, as pessoas vão descobrindo alternativas e oportunidades, tal como em qualquer outro ponto do movimento perpétuo da história.
Dito isto, não ponho em questão as grandes probabilidades que tudo se desenrole de forma positiva (a auto-preservação é um instinto muito forte), relativizando o peso dos transportes devido a comportamentos "auto-regulatórios" gerados por preços altos mas é tudo uma questão de tempo.
A questão é que o transporte (barato, necessariamente) não é apenas gordura e desperdício: o transporte de carga não-rodoviário interno na UE é menos de 15%; o comércio global é feito em 90% por navio (uma das imagens do Verão de 2008 foram as centenas de navios ancorados no Mar da China, cheios de carros e roupa) e os passageiros por via aérea são 16 biliões- tudo isto é o suporte da coesão económica de países que compram e que exportam, de interacção de pessoas e de alianças políticas. A Revolução Industrial disparou com o transporte permitido pelo vapor e continua até hoje (e mais do que nunca), dependente de energia acessível e barata. Uma redução do transporte global não implica eficiência mas estagnação ou regressão- após décadas a construir uma dependência total do comércio externo, abandonando as capacidades próprias, todos os países se expuseram a uma fragilidade sem paralelo. Como desfizemos, podemos refazer agora, mas precisamos de tempo.
Mas a infra-estrutura monumental que é o transporte global é impossível de mudar significativamente em 30 anos, quanto mais em 5. Em Portugal, os nossos 3 maiores exportadores - Galp, Tap e Autoeuropa - por exemplo, dependem directamente de crude barato, o transporte rodoviário está nos 98% (!) por isso torna-se óbvio que é difícil ter a estabilidade económica relativa necessária a tais transições, assumindo que não há uma enorme resistência, por parte de políticos e cidadãos, a tudo o que implique algum tipo de mudança de hábitos para longe do paradigma de consumo actual. Os transportes colectivos são cruciais mas em apenas 15 dias (!) anunciou-se a extinção de linhas de comboio; que rodoviárias vão fechar por dívidas do Estado; que preços dos transportes vão subir; que se venderam mais automóveis do que nunca; que a CP Carga está em falência técnica e, finalmente, que o preço do petróleo subiu de 70 para bem acima dos 90$ em menos de 3 meses (por causa disto commodities como o açúcar duplicaram de preço mas a população e jornalistas lá pensaram que a culpa é dos hipers).
Está difícil, como bem apontou o Mário, ter um sentimento mais construtivo do que a preocupação.
Basicamente, posso soar algo pessimista mas não é porque enfrentamos um desafio técnico gigantesco mas porque ninguém reconhece que exista sequer um problema estrutural na nossa economia e sociedade.
Nesta fase, se ventilar publicamente qualquer tipo de alerta deste género, corro o risco de passar por um daqueles profetas que se encontram nos semáforos.
N.
[Mário Alves] post 2
Obrigado pelo comentário. De facto somos sempre tentados, e chamados, a prever o futuro. O que sugiro no artigo é que em vez de o tentarmos prever, devíamos tentar construi-lo. Como? Construindo narrativas coerentes sobre o futuro, ponderando as responsabilidades e consequências (entende-se a atenção que o Kunstler dá à ficção). Só assim podemos também pensar melhor em formas de alterar os nossos destinos. Com visões partilhadas de futuro, podemos evitar, pelo menos parte, as consequências de continuarmos a comportar da mesma forma. Como diria o La Palisse , e como descobriu o Kunstler com o bug do milénio, o futuro depende em muito de nós. Claro que em situações muito complexas e com grande velocidade, alterar padrões e trajectórias será sempre muito mais difícil e até doloroso. Mas é bem mais útil e interessante procurar futuros desejados, que tratar o futuro como uma fatalidade a que nos temos que adaptar.
Vídeo de uma apresentação da Dana Meadows onde fala sobre a importância de ter uma visão sobre o futuro (vale a pena ver até ao fim, porque termina de uma forma corajosa e surpreendente):
http://www.uvm.edu/giee/beyondenvironmentalism/Meadows.mov
O último relatório da EIA é muito interessante também por causa desta complexidade de saber do que estamos a falar quando falamos do futuro. O caso do petróleo é um bom exemplo de como o seu futuro como recurso depende muito da forma como alteramos comportamentos e políticas. O que à primeira vista pode ser interpretado como "finalmente o anuncio do pico pela EIA":
http://motherjones.com/kevin-drum/2010/11/chart-day-peak-oil
É justificado de outra forma: adoptando New Policies scenario " (ler com atenção o gráfico) a pressão da procura do petróleo baixará de forma a não ser necessário aumentar a oferta. Não que eu pessoalmente acredite muito na possibilidade da adopção do New Policies scenario ", mas é claramente uma tentativa da EIA alterar e controlar o futuro. E como sabemos há duas maneiras de lidar com limites, ou pela gestão ou pela catástrofe.
O meu cepticismo na adopção do New Policies scenario " tem muito a ver com outro aspecto interessante do último relatório da EIA: estimaram que em 2009 os combustíveis fosseis receberam em todo o mundo 312 biliões de dólares em subsídios (os quais muitas ONGs consideram subestimados e, sabemos nós, não incluem as externalidades). Dizem os cínicos que política é a arte de passar os problemas para a geração seguinte.
Sobre as consequências do impacto do preço do petróleo, devo acrescentar que poderá ser mais indirecto sobre a mobilidade das pessoas (através do impacto directo na economia, pessoas sem dinheiro de pijama em casa viajam pouco) e mais directo sobre transporte de mercadorias. A mobilidade individual das pessoas tem neste momento muita "gordura" ineficiente de reserva (tonelada e meia para transportar uma pessoa virgula três!) o que ajudará a encontrar, não sem dor, formas mais eficientes de locomoção. Cobrar ou não as externalidades ao Transporte Individual poderá passar a ser uma questão política irrelevante, perante a revolta paralisante dos camionistas, da inflação e desemprego, do aumento da divida externa para o pagamento da factura energética, etc.
Para não pensar que estou a fugir à pergunta: sim, a situação é preocupante. Preocupação é um sentimento pouco útil. Mais vale procurar na arte e filosofia formas de compreender melhor o que se está a passar e imaginar outros futuros.
Mário
[Nuno] post 1
Ecoo também a questão de pertinência de "voltar atrás" a um paradigma de crescimento baseado no consumo, que enfrenta agora o seu maior desafio político após o colapso do comunismo.
Perguntava apenas ao Mário Alves, porque acha que a inclinação "Cassandrista" do Kunstler, agora assente no binómio economia financeira/disponibilidade de energia barata, está igualmente errada, após o previsível flop do bug do milénio?
Também não vou muito à bola com o estilo de escrita do homem, a não ser por motivos lúdicos (felizmente passou a dedicar-se à ficção), mas quando a própria IEA corrobora as suas previsões a curto prazo...
http://economia.publico.pt/Noticia/petroleo-preparase-para-voltar-aos-100-dolares-o-barril_1471018